Este texto é um manifesto, uma reflexão, e
possivelmente um pedido de ajuda de uma mulher que passa tempo demais no
Twitter, mesmo sabendo que a alternativa mais fácil é simplesmente sair de lá.
SENTIDO
IMPORTA
Toda
história segue uma estrutura narrativa, todo entretenimento é formulaico. E
não, não há nada de errado nisso.
Fosse o
caso, não teríamos cursos de roteiro, estudos sobre mitologias, workshops de
escrita criativa. Existe todo um aparato de ferramentas visando a mesma
finalidade: destrinchar e repassar os elementos arquetípicos responsáveis por
construir uma boa história; demonstrar como preencher a necessidade de um
começo, meio e fim.
Não sei de
onde surgiu a nova ideia de que, pra algo ser bom, precisa ser subversivo e completamente
original — como se uma baboseira dessas fosse possível; como se não houvesse um
mar profundo e rico em símbolos onde todos temos os dois pés mergulhados, e um
pouco da cabeça — mas, na prática, o que acontece é justamente o contrário.
Ideias sem
estrutura narrativa são apenas caos.
Pessoas
podem ser adeptas do nihilismo existencial, bradar por aí que nada faz sentido,
ter evidências o suficiente para corroborar sua teoria, mas, nas histórias
criadas por nós, tudo tem um porquê de existir. A ficção é diferente da vida
justamente para atribuir significado a ela. É o motivo pelo qual os
mitos existem, no fim das contas: pra que o ser humano faça sentido de si mesmo
e do mundo que habita, através de sua capacidade de traduzir suas emoções em
palavras. A palavra, conectada a outra palavra, de forma intencional e
encaixada, nos dá a possibilidade de observar e entender, de organizar
externamente o que existe dentro, e não se afogar em si mesmo.
Nossas
questões internas, ainda que projetadas sobre uma tela, anseiam por resolução,
não interrupção.
STRANGER
THINGS NÃO SE ESTABELECE COMO UMA SÉRIE QUE MATA PROTAGONISTAS
É isso.
Partindo
do pressuposto de que todo entretenimento segue uma fórmula, parece claro que a
cartilha seguida pelos Duffer Brothers não é essa. Caso contrário, teriam
estabelecido isso no começo, na primeira temporada (responsável por introduzir
aquele universo e suas regras), ou quem sabe até na segunda.
Game of
Thrones, sempre apontada como uma série subversiva e, até certo ponto, aclamada
por isso, por exemplo, mesmo em toda sua disruptividade, se estabelece
assim logo no início. Na primeira temporada, morre o protagonista, e você
entende ali que aquele é o tipo de história em que ninguém está a salvo, não
importa o quão importante, justo e bondoso seja. Literalmente qualquer um
pode morrer.
E qual é o
nome disso, meus amigos? Sim! Ordem! Ao entender que ninguém está
à salvo, você sabe o que esperar. Esperar o inesperado.
E, até
certo ponto, não tão inesperado assim.
Nos
livros, pelo menos, ninguém morre à toa. Toda morte tem um motivo, serve a algo
no roteiro e obedece a um arco.
O próprio
George R. R. Martin brincava em entrevistas que os produtores executivos eram
muito mais cruéis que ele, pois, na série, mataram muitos personagens que nos
livros ainda estavam vivos (obviamente porque não sabiam escrever e se
utilizavam disso para tentar mascarar a falta de talento. Palavras minhas, não
do George).
E é isso
que acontece quando a morte de personagens, junto à necessidade de chocar, é
utilizada de forma indiscriminada como recurso preguiçoso por quem não sabe
como evocar emoções em seu público de outra forma.
STRANGER
THINGS É PREVISÍVEL
Pois é.
Stranger
Things e uma série inspirada em filmes dos anos 80 famosos por seguirem a
clássica jornada do herói, onde os protagonistas vivem uma vida ordinária,
recebem um chamado, embarcam numa aventura, QUASE MORREM, entendem algo, se
salvam no último minuto e fica tudo bem. E estamos falando de uma época onde os
protagonistas não só sempre venciam, como representavam OS ESTADOS UNIDOS, e os
seus ideais propagados durante a guerra fria.
E é,
portanto, uma série extremamente previsível.
E isso é
bom, é boa escrita.
Não que
tudo feito por eles seja bom. Deus sabe que existe a terceira temporada.
Mas
história nenhuma nasce no vácuo; é preciso ter raízes, um solo estabelecido,
disseminar propositalmente sementes que vão gerar frutos mais adiante.
São
deixadas dicas ao longo dos episódios para o espectador ligar os pontos e
chegar a conclusões antes dos protagonistas (e se sentir muito sagaz no momento
da revelação, pois estava certo!). É possível prever os acontecimentos, e até
mesmo os DIÁLOGOS dos personagens.
Até o
momento, nada grita a necessidade de te surpreender com o impensável. E
considero isso ótimo.
Existe
algo na certeza de que vai ficar tudo bem que te permite realmente vivenciar a
possibilidade de tudo dar errado.
E é esse o
efeito de uma boa construção narrativa: você torce pra que não aconteça, mesmo
sabendo que vai acontecer. E tem medo de que aconteça, mesmo sabendo que não
vai.
SUBINDO
O MORRO PRA FALAR COM DEUS
Apesar de
serem homens nerds, e, portanto, não confiáveis, os Duffer Brothers não
demonstram sadismo em sua escrita (exceto pelo fato de o pobre do Steve ter o
coração partido todo fim de temporada, e o pobre do Will Byers, a Éponine de
Hawkins, pairar em situação de sofrimento ao fundo de qualquer cena do Mike com
a Eleven).
Por isso
não fazia sentido pra mim todos os surtos em relação a possíveis mortes da Max
e do Steve. Nada na história apontava para isso. O único personagem
verdadeiramente em risco era o Eddie, seguindo o padrão das outras mortes da
série, e das estruturas mencionadas de narrativa: personagens novos, com os
quais ainda não temos tanto apego, e carismáticos o suficiente para que
a perda seja sentida.
E, apesar
de triste e evitável, serviu ao enredo.
Alguém
precisava morrer.
Podia ter
sido o Murray, mas foi ele. Alguns sacrifícios são necessários para os Deuses
do drama.
CONCLUSÃO
Stranger
Things segue a fórmula clássica dos filmes de sucesso da década de 80 e 90, tão
em falta na atualidade, que se manifesta cada vez mais cínica e desesperançosa:
a jornada do herói, onde os protagonistas recebem o chamado, embarcam numa
aventura, vivem dificuldades, compreendem algo e saem vitoriosos.
E por isso
acho ilógico que qualquer um do núcleo principal morra.
Não faz
sentido.
Seria
cruel. E esperar que isso aconteça, para que a série seja considerada ‘boa’,
além de bobo, é desonesto, uma vez que eles nunca se apresentaram assim.
Significa
que não vai acontecer? Não. Claro que não. Como dito, os
roteiristas são homens nerds, e, portanto, não confiáveis. Talvez chegue a 5ª
temporada, eles surtem, e não sobre ninguém.
Talvez
construam de forma legítima o caminho para a morte de alguma personagem
importante (apesar de não conseguir imaginar uma forma não-cruel disso
acontecer, visto que a morte não seria exatamente a resolução de um arco, e
absolutamente TODOS os envolvidos terão de viver com as consequências do trauma
vivenciado. Oi? São os anos 80. Não existe terapia no Tumblr ou no
Twitter.)
Mas o
ponto não é esse, e sim mostrar que, até o momento, não é o que vem sendo
desenhado.
E aí fica
um apelo: será que não conseguimos apenas aproveitar as coisas? É preciso
tentar adivinhar o tempo inteiro o que pode acontecer, em vez de apenas
aproveitar o que se tem? Quando o entretenimento se tornou fonte de mais agonia
do que diversão? É todo mundo tão apavorado assim?
Enfim,
Stranger Things, em sua essência, é uma história sobre amor, laços, amizade e
propaganda anticomunista.
Espero que
tenha um final feliz.